No ano de 1807 apareceu no céu uma estrela sob o poente, que parecia ter um rabo à maneira de foguete, aparecia logo à noite, e conservava o dito rabo até se pôr. Apareceu todos os dias por espaço de três meses. Fez expectação em todas as pessoas, e os mais experientes assentaram ser prognóstico de guerra, eu o ouvia a muitos.
E assim foi: eis que de repente apareceram no centro deste Reino dois corpos de soldados franceses, dizendo os seus comandantes que vinham proteger a Nação da maligna influência dos Ingleses (...) mas o principal motivo que os trazia era a sua Real Pessoa e toda a Família Real, e deste modo apossar-se do Reino.
![«Planta da cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro», [João Caetano Rivara], Sculp. P. S. F. Souto, Rio de Janeiro, 1817 (BNP C.C. 488 V.)](/images/stories/agenda/2015/rio_janeiro_cc-488-v.jpg)
A aparição da estrela, na tradicional linha dos prognósticos, anunciava a tragédia que se viria a abater sobre Portugal: as Invasões Francesas, a guerra, a transmigração da Família Real para o Brasil. Em meio a ordens de prisão, agravos de vereadores municipais, um procurador e um juiz «rústico, ignorante e mau», a receita de um «emplastro para a dor de dentes, quebraduras, pontadas e espinhela fendida», e ainda um remédio para os olhos e outras mezinhas, destaca-se uma relação da entrada das tropas napoleónicas com seu rol de atrocidades. «Horrores», saques, casas queimadas, assassínios, violações, destruições, «clausuras corrompidas», estrebarias nas igrejas, ornatos sacros ultrajados («Ah!. Até temo escrever: as sagradas partículas deitadas em ração aos cavalos»).
Um pequeno códice da Torre do Tombo, genericamente intitulado Factos Históricos, cujo termo de abertura data de 8 de Outubro de 1787, para receber os «manuscritos despegados, e termos de denúncia que se derem na Superintendência da Vila de Pudentes», haveria de conter um precioso documento intitulado «Carta de um negociante que relata a entrada do Príncipe Real Nosso Senhor D. João no Rio de Janeiro, escrita a um irmão. Rio de Janeiro, 3 de Fevereiro de 1809». Este manuscrito, publicado sob o título de Carta de um negociante anónimo ou o achamento ao contrário (veja-se O Reino sem Corte. A Vida em Portugal com a Corte no Brasil, 1807-1821, coord. de Ana Leal de Faria e Maria Adelina Amorim, Lisboa, Tribuna da História, 2011), aparece, assim, entre memórias, premonições, receitas de boticário, cartas de enganar, contabilidade de almudes de vinho e de milho, sinais, desígnios divinos, tragédias e comédias. Um mundo ao contrário.
Cerca de quatrocentos anos depois da Carta fundadora de 1500 - «certidão de nascimento do Brasil» -, esta é escrita no cais. É em terra que um anónimo comerciante luso-brasileiro de raízes beirãs (d)escreve para a Memória do Futuro, a chegada da maior frota jamais arribada a terras brasílicas. Nela, a Família Real europeia e uma Corte inteira transmudada para o outro lado do mar. Para as Américas.
Seguiu-se no dia 5 de Março de 1808 divisar-se uma esquadra pelas dez horas da manhã. Era Sua Alreza Real com todo o resto da esquadra, e Real Família, e quando foram três da tarde, já toda a esquadra tinha entrado, e a ultima embarcação foi a que trazia S.A.R. com sua Augusta Mãe, a Rainha Nossa Senhora. Esta foi uma das tardes mais brilhante, e linda, que teve esta cidade, porque todas as naus e fortalezas se embandeiraram, e as mesmas salvavam a um tempo uma salva de vinte e um tiros». Seguiram-se dias e dias de luminárias, missas e procissões, fortalezas e naus embandeiradas, as gentes apinhadas pelas ruas da cidade, iluminações no chafariz, coros de música a entoar louvores, «concertados sonetos». Por esses dias, «as noites de luar, o mais lindo, convidavam o Povo as passasse no largo, nos belos assentos do cais a ver como a lua prateava os mares».
É este documento quase virgem para os historiadores portugueses e brasileiros que vai contar a história do povo e da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro nesses primevos anos do Dezanove. Quando uma Corte inteira se transportou de uma Europa em guerra para o Brasil, «um novo Portugal». Prognóstico anunciado pelas estrelas do começo do fim de um Império...
Do grande Afonso a descendência Augusta
Os Povos doutrinou do Mundo Antigo
Para a glória esmaltar do Novo Mundo
Manda o VI João o céu amigo.
Maria Adelina Amorim, doutorada em História do Brasil pela Universidade de Lisboa. Docente universitária e investigadora. Especialista em História do Brasil Colonial com incidência na Amazónia e antigo Estado do Grão-Pará e Maranhão. Trabalha também o espaço atlântico e Angola em particular. Destaca-se a produção e conferências sobre a historiografia das Ordens Religiosas no Brasil, questões indigenistas, circularidades e interlocuções histórico-literárias, Literatura de Viagens, História Natural, Bestiário e Mirabilia. É investigadora integrada do CH-UL, Centro de História da Universidade de Lisboa e no CHAAM- Centro de Hstória de Aquém e de Além-Mar da Universidade Nova de Lisboa. Actualmente é Bolseira de pós-doutoramento da FCT com o tema: Política Indigenista dos Franciscanos na Amazónia Colonial (seculos XVII-XVIII): Teoria e Praxis da Missionação.